Primeiros capítulos de As Batidas Perdidas do Coração
- Bianca Briones
 - 18 de mar.
 - 6 min de leitura
 
Os primeiros capítulos de um livro são cruciais para conquistar ou não o leitor.
Antigamente, eu não tinha coragem de abandonar livros. Hoje eu tenho. Se o livro não tiver me conquistado nos primeiros 10%, eu insisto, mas jamais passarei dos 25%, se não estiver envolvida.
Enquanto escritora procuro tomar o cuidado de escrever inícios que deem aos leitores um gostinho do que eles podem esperar.
Será que obtive esse êxito com As Batidas Perdidas do Coração?
CAPÍTULO UM - Viviane
Meu pai costumava dizer que nada acontece por acaso e que devemos ser capazes de perceber os sinais de que algo bom virá em qualquer situação. É o modo de pensar que ele aprendeu com meu avô e ensinou a mim e ao meu irmão. Sempre ver o lado positivo, sempre buscar o “se não acabou bem, é porque não terminou ainda”.
Ele gostava de frases de efeito. Acho que faz parte do publicitário dentro dele. Fazia, fazia parte. O mais brilhante e importante publicitário de São Paulo. Ele certamente teria a frase mais tocante para este momento, que se encaixaria como uma luva.
Meu pai não deixou de acreditar nem quando a vida lhe sentenciou à morte. “O que tiver de ser será... Vou ficar bem. A vitória pertence a quem acredita nela por mais tempo.”
Sei que isso é citação de alguém. Ele adorava citações em qualquer língua. Todo dia ouvíamos uma.
Quando papai conseguiu ultrapassar os seis meses de vida que lhe foram estipulados pelo câncer no pulmão, minha fé redobrou e acreditei que ele venceria, mas eu não era parâmetro. Eu acreditava em qualquer coisa que ele fizesse ou dissesse.
Agora, dez meses após o diagnóstico, acabo de assinar os documentos para liberar seu corpo, enquanto meu avô tenta inutilmente confortar minha avó.
Minha mãe ainda dorme, sob forte efeito de calmantes. Se optei por acreditar até o fim, ela — talvez por enxergar algo que eu não pude — optou por se esconder, por negar a perda iminente.
Olho ao redor e não vejo meu irmão em nenhum lugar. Preciso encontrá-lo. Ando em direção à entrada do hospital, pensando que ele pode estar lá fora. Pessoas entram e saem, cada uma vivendo seu próprio momento. Algumas comemoram nascimentos, outras lamentam perdas como a minha. Olho para os lados, apressada. Preciso encontrar Rodrigo.
Deixo a recepção e, quando encosto no vidro para empurrar a porta, vejo alguém tocar no outro lado para entrar. Ele usou a mão fechada. Há tatuagens em seus dedos, pequenos sinais que não reconheço. Noto quando ele dá um passo atrás para que eu possa passar. Trocamos um olhar, que não dura mais que dois segundos. Olhos azuis, marcados de vermelho, como se tivesse acabado de chorar. O lábio inferior está cortado e há um arroxeado no queixo, quase encoberto pela barba por fazer. Ele puxa o gorro escuro para baixo, como se eu o tivesse pegado em flagrante, e vejo apenas pontas de cabelos castanhos.
Ele para e me encara, como se fosse dizer algo, ou pelo menos julgo que fosse. Aperto mais meu casaco, que se perde em um tom entre o rosa e o salmão, ao sentir o ar gelado passar e se chocar contra a camisa branca que uso por baixo. A saia preta e curta, repleta de babados, não protege minhas pernas. Como o tempo pode mudar tanto em São Paulo? Pela manhã, por pouco não pego o casaco, mas meu pai me deu um último conselho: “Viviane, o que eu sempre digo? Não saia de casa sem casaco”. A botinha de cano baixo e salto fino já fez com que eu perdesse a habilidade de sentir os dedos após uma tarde inteira andando de um lado para o outro, e isso me desvia do fato de que eu gostaria de poder não sentir nada.
Avisto meu irmão. Rodrigo é só dez meses mais novo do que eu, o que nos faz ter a mesma idade, dezoito anos, pelo menos até o mês que vem, quando faço aniversário. Ele é a versão adolescente do meu pai. Não consigo evitar um sorriso triste. É como se meu pai andasse até mim outra vez, com seus cabelos negros contrastando com o verde dos olhos. Ele me abraça silenciosamente, e, quando me solta, percebo que o rapaz ainda está parado, mas algo em seu olhar mudou ao ver meu irmão. Um brilho de inconfundível fúria surge antes que ele coloque as mãos nos bolsos do blusão cinza-chumbo e se afaste. Se meu irmão percebe, não diz nada.
É estranho e me pergunto a razão de me preocupar com isso. Talvez seja a ligação instantânea que a dor estabelece entre as pessoas. Ou talvez seja um modo de desviar a atenção do que eu mesma estou vivendo.
Novamente, volto a pensar na conversa que tive com meu pai, e uma frase explode em meu coração, à medida que caminho com Rodrigo pelos corredores brancos e congelantes do hospital: “A vida é muito mais que uma sucessão de fatos ao acaso. Quando você acha que nada mais pode acontecer, é exatamente aí que tudo muda”.
CAPÍTULO DOIS - Rafael
Estou há uma hora parado em frente ao hospital. Meu celular tocou algumas vezes, mas nem o tirei do bolso do blusão. Sei que é minha mãe e ainda não estou pronto para entrar.
Cruzar aquela porta é formalizar a morte de mais alguém que amei. E, honestamente, quero mais é que a morte se foda.
Não quero ver o corpo da minha única irmã, não quero ver Lucas, meu primo, desolado porque seus pais e irmão morreram em um acidente de carro causado por mais um filho da puta imprudente da classe alta de São Paulo. Não quero olhar para minha mãe e ser sufocado por tudo o que senti quando meu pai foi assassinado há quatro anos. A morte já me levou vidas demais.
Observo o entra e sai de pessoas, a diferença de cada uma delas. E me atenho aos detalhes para não ser afogado pelo todo.
Dou uma última e longa tragada no cigarro, deixo o que sobrou escorregar entre os dedos e o apago com a ponta do coturno. Quase posso ouvir a voz da minha irmã me acusando de não me preocupar com o meio ambiente. Então, por ela, abaixo, pego a bituca novamente e jogo em uma lata de lixo, enquanto caminho rumo à porta do hospital.
Um vento gelado corta a rua e coloco o gorro, para me proteger da corrente de ar e do olhar das pessoas. Após a briga das últimas horas, não sou exatamente algo que valha a pena olhar, mas o estado do moleque é pior — aquele que levou a vida de quatro pessoas da minha família por tirar um racha na avenida, e que não será condenado jamais, graças ao pai promotor.
A ironia é que ele nunca será preso, e eu passei a última noite da vida da minha irmã na cadeia, enquanto ela lutava para resistir a uma segunda e derradeira parada cardíaca.
Coloco a mão no bolso e aperto o chaveiro dela. Um chaveiro de pelúcia em forma de estrela cor-de-rosa. Um presente do meu pai, que ela segurava quando os paramédicos a tiraram do carro capotado. Agora sou eu quem aperto a estrelinha com uma mão, enquanto a outra encosta no vidro da porta do hospital. Uma garota faz o mesmo. Não tem como não me lembrar da Priscila ao ver o casaco rosa. Ela adoraria. Ela vivia escolhendo modelos em sites pelos quais nunca poderia pagar. E é aí que as semelhanças entre a minha irmã e a garota terminam. Um olhar rápido é suficiente para reconhecer que ela destoa das outras pessoas. Uma aparente delicadeza, pele bem clara, traços suaves e cabelos loiros, caindo tranquilamente em ondas pelos ombros.
Ela me olha também e parece fazer a mesma investigação que eu. Lágrimas marcam seu rosto. Semelhanças que só encontramos em um hospital — a dor e a morte são implacáveis com todos nós. Não há distinção. Entreabro os lábios, nem sei se ia dizer algo, mas qualquer pensamento racional se vai quando um garoto a abraça.
Odeio prejulgamentos e me odeio mais ainda por ceder a eles, mas, se a garota me faz lembrar da minha irmã, o garoto desperta a memória de seu assassino. Ainda que eles não sejam parecidos, algo em seu porte indica que pertencem ao mesmo grupo social. Aquele que não se importa com as consequências, porque sempre vai ter um pai rico e influente para limpar sua barra.
Passo por eles sem olhar para trás. Mal podendo esperar pelo momento de encontrar minha mãe e meu primo e deixar este hospital. Odeio este lugar.









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